DUNA: o livro e o filme

Conheça a mítica por trás das obras realizadas por Frank Herbert e por Denis Villeneuve

Ben Santana

Duna é uma das maiores histórias de ficção científica de todos os tempos. Isso é inegável.

Frank Herbert (1920-1986) a publicou, de forma serializada, pela primeira vez na prestigiosa revista Analog, entre 1963 e 1965. No ano seguinte, ela foi lançada em livro e, de cara, ganhou a primeira edição do Prêmio Nebula e empatou no Prêmio Hugo com This Immortal, de Roger Zelanzy, ambos na categoria de melhor romance. É fácil entender o porquê: Duna é uma mistura de ecologia, honra, (muita) religião, filosofia, intrigas de corte, ódio e amor antigos. E, acima de tudo, um livro extremamente bem escrito, com diálogos cortantes e, de forma alguma, nada simples.

Vendeu muito. Herbert escreveu mais cinco livros dentro daquele fascinante universo, com um sétimo programado que não viu a luz do dia devido ao seu falecimento. A partir de 1999, o filho de Frank, Brian Herbert, e o escritor de ficção científica Kevin J. Anderson escreveram mais de uma dúzia de outros, baseados nos personagens e conceitos criados em 1965.

Duna, a grosso modo, se passa em um futuro distante, onde a humanidade se espalhou pela galáxia e a Terra é apenas uma lembrança mítica. Casas feudais interestelares controlam planetas inteiros, apesar de “máquinas pensantes” terem sido erradicadas séculos antes, graças a um jihad que libertou os humanos que tinham sido escravizados por poderosos organismos cibernéticos e uma inteligência artificial maligna. Herbert, propositalmente, mostra pouca tecnologia em um livro de ficção cientifica. Ele prefere mostrar a política da humanidade e não sua evolução tecnológica. Assim, ele explora os dilemas morais da condição humana e não sua relação com a tecnologia. Ou a falta dela. Herbert acreditava piamente no feudalismo.

Então, viajar pelas estrelas em Duna apresenta um problema. Sem computadores, seria impossível processar os enormes cálculos necessários para singrar o espaço, bem como se orientar no vazio interestelar. Mas, muito cedo – em um período antes dos acontecimentos do livro – é descoberto que uma substância chamada spice melange, proporciona que certos humanos, os Mentats, se tornem computadores humanos, capazes de cálculos mentais complexos e os Navegadores – seres humanos que sofreram mutações severas graças ao consumo da tal substância – consigam pilotar as gigantescas naves que ligam tais planetas. O melange é a commodity mais importante do universo de Duna. E só é encontrada em Arrakis (ou Duna), um planeta desértico. Ela é produzida por gigantescos vermes de areia, adorados pelos nativos, os Fremen. Toda a sua cultura é baseada nas criaturas e na produção do melange.

Um Filme para Fãs

O livro – e o filme de Denis Villeneuve, recém-lançado – começa quando a Casa Atreides é convidada pelo Imperador de todas as Casas, Shaddam IV, a assumir o controle de Arrakis. O planeta tinha estado sob o julgo de uma Casa rival, os Harkonnen, por muito tempo. Na verdade, o Imperador Shaddam tem medo dos Atreides e isso não passa de uma armadilha: o Imperador pretende destruir o que ele considera uma ameaça.  O Duque Leto Atreides, sua esposa e seu filho, Paul, sabem disso. Mas não podem se negar.

Paul deveria ter nascido menina, mais uma na linhagem que busca o ser humano perfeito, o kwizat haderach, profetizado pela irmandade das Bene Gesserit, que manipulam geneticamente as Casas através de poderes conseguidos pelo uso do melange. Jessica, a mãe de Paul, faz parte das Bene Gesserit mas, por amor ao seu marido, dá a ele um filho. E Paul está destinado a trilhar um caminho sem volta em Arrakis.

Tudo isso é revelado aos poucos durante o livro. Fatos do passado são vislumbradas graças a pequenas citações e extratos de documentos no início de cada capítulo. Villeneuve não dispõe de tal artifício, o que pode se tornar um tanto confuso para quem não está acostumado com a mitologia de Duna e de seu universo. Ele é fiel ao material-fonte de forma quase religiosa (trocadilho intencional) e não recorre à tentação de tentar explicar ao expectador cada uma das nuances do que está acontecendo. Para quem entra em contato com tudo isso pela primeira vez, pode ser extremamente confuso. A fidelidade de Villeneuve é a maior força do filme, mas também a sua maior fraqueza.

Quem não leu o livro, pode ficar perdido. Se você não sabe quem são os Mestres Espadachins de Gynaz ou o que é uma crysknife, não há uma explicação (como fã, achei maravilhoso cada minuto de projeção – o que pode não acontecer com quem caiu de pára-quedas no deserto de Arrakis). Talvez essa seja a razão de as redes sociais já estarem repletas de comentários de que o filme seria “chato”. Não é. Ele apenas exige um pouco mais de seu espectador, da mesma maneira que O Poderoso Chefão o faz. E, não, esta não é uma comparação hiperbólica.   

Outro “problema” é que Duna – tanto livro quanto filme – mostra uma história onde não temos apenas preto e branco. A quantidade de matizes de cinza é enlouquecedora. O que é anátema para muitos dos espectadores, e não só os de hoje, infelizmente.

Muitos dizem que Duna, escrito há quase seis décadas, é uma fábula, um conto moral que nos mostraria como seria o mundo se ele fosse um deserto. Outros dizem que é sobre a nossa dependência do petróleo e de quem o controla (“quem controla o melange, controla o universo”)… não é por acaso que muito em Duna, do vocabulário até certas palavras, lembram a cultura árabe. Dizem também que é sobre a religião, o messianismo e o fanatismo. E há aqueles que dizem que é sobre um homem que pode ganhar o universo e perder a sua alma. Todos estão certos. E Villeneuve resolveu mostrar tudo isso. Ao mesmo tempo. Sem filtros.

Ele entrega um pedaço – sim, é só a primeira parte do livro… uma das reclamações de alguns espectadores – de algo muito maior, de forma extremamente fiel. De novo, por causa dessa fidelidade, vai encontrar pessoas que vão odiá-lo. Ou adorá-lo (meu caso). Se você está esperando algo como a versão de David Lynch (lançada em 1984), vai se surpreender. É como comparar uma Ferrari com um Chevette.

O filme ainda conta com um elenco estelar: Stellan Skarsgard, Josh Brolin, Javier Barden, Rebecca Ferguson, Jason Momoa e até uma participação de luxo de Charlotte Rampling. A única exceção é o personagem principal, Paul, que é interpretado por Timothée Chalamet. Arriscaria dizer que Villeneuve fez de propósito, evitando algum rosto extremamente conhecido. Afinal, Paul Atreides vai sofrer transformações profundas no próximo filme e o ator pode ser usado como uma tela em branco.

Mas, independentemente do elenco e dos maravilhosos efeitos especiais que deram vida dignamente a elementos que só podíamos imaginar lendo os livros, uma obra tão fantástica quanto o filme não seria nada, insisto, se o material-fonte não fosse excepcional.

Duna, de Villeneuve, deve ser encarado pelo que realmente é: um aperitivo para o banquete que ainda virá.

Se o Criador e Sua água – que Sua passagem purifique o mundo – assim o permitir.

Ben


Ben Santana 
é um dos maiores conhecedores de ficção científica e literatura fantástica do Brasil. Geralmente, se ele ainda não leu um livro do gênero, é porque não vale a pena

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