Um Herói, Muitos Escritores: a história de 007 na literatura

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Desde a morte de Ian Fleming, muito escritores criaram aventuras para James Bond nos livros. Conheça as mais interessantes

Por Ben Santana

Uma boa parte dos fãs de James Bond nunca leu um dos seus livros. Se tivessem lido teriam encontrado um personagem bem diferente de sua versão cinematográfica. Segundo o seu próprio criador, Ian Fleming, “eu queria fazer de Bond um homem totalmente desinteressante, com o qual coisas interessantes aconteciam… ele é uma arma poderosa, mas sem precisão”. Ou seja, o Bond de Fleming era, para todos os efeitos, um funcionário público glorificado, que faz as coisas pelo seu país e pela rainha. Mas ao mesmo tempo é sádico e misógino. E se orgulha disso.

02Fleming o criou em 1953, no livro Cassino Royale. A mistura de sexo e violência o transformou em um sucesso imediato. Conta-se que o falecido presidente John F. Kennedy era um fã ardoroso e declarado, tendo inclusive consultado Fleming sobre o problema com Cuba. Não foi a toa que em 1962 ele foi levado ao cinema, com o então quase desconhecido Sean Connery, que trabalhou a crueldade e (principalmente) a masculinidade inerente do personagem. Mas os filmes começaram a ficar cada vez mais fantásticos e se apoiavam mais e mais nas traquitanas fornecidas pelo Departamento Q. Que o diga o carro invisível de Pierce Brosnan em Um Novo Dia Para Morrer (2002).

Os livros de Fleming, entretanto, eram ancorados na realidade do momento e no delicado jogo de poder entre as superpotências. De acordo com o estudioso do personagem, John Griswold, as aventuras de Bond se  passam entre 1951 e 1964, o auge da Guerra Fria. Ele diz: “Se o grau de veracidade desses livros tivesse sido um pouquinho maior, o autor teria sido preso pelo Serviço Secreto como traidor”.

Mas Fleming não achava que a Guerra Fria fosse durar muito tempo, por incrível que pareça.  Tanto que em 1961 ele criou, no livro A Chantagem Atômica,  a SPECTRE  (SPecial Executive for Counter-Intelligence, Terrorism , Revenge and Extortion), uma organização criminosa sem afiliações a nenhuma potência, comandadas por Ernest Stravro Blofeld. A SPECTRE tomou o lugar da SMERSH (russo para SMERt SHpionem, ou “Morte aos Espiões”, uma organização fictícia soviética de contraespionagem) como os inimigos principais de 007 e do mundo livre.12

O escritor deu a Bond algumas de suas próprias características. Se não físicas, comportamentais.  Tanto criador quanto criatura bebiam em doses industriais (apesar disso nunca ter afetado o desempenho de 007 em missões) e fumava cerca de sessenta cigarros por dia (feitos sob encomenda pela Morland, de Grovesnor Street, uma mistura de tabacos balcânicos e turcos). Além disso, Bond fez uso de drogas algumas vezes, tanto por funções de trabalho como recreativas. Por exemplo, em O Foguete da Morte (1955), ele consome anfetaminas com champanhe antes de um importante jogo de bridge com o vilão do livro, Sir Hugo Drax.

06Tudo isso faz que o Bond de Fleming seja humano. E falho. Bem diferente das suas versões cinematográficas, onde ele é retratado quase como um super-homem.  E, é claro, fez que muitos críticos o considerassem quase um vilão. Fleming respondeu a essas críticas em uma entrevista à Playboy: “Eu não acho que ele seja necessariamente um sujeito completamente bom ou mau. Quem é realmente assim? Ele tem seus vícios e algumas poucas virtudes, como patriotismo e coragem – o que provavelmente não sejam virtudes, de qualquer forma. Eu nunca pretendi que ele fosse uma pessoa simpática”. Ele continua: “James Bond é um homem saudável, violento e não cerebral, com trinta e poucos anos. E uma criatura de seu tempo”. E esse é exatamente o ponto: James Bond é um produto de sua época. Simples assim.

Fleming escreveu doze romances e duas coleções de contos que foram publicados entre 1953 e 1966.  Os dois últimos, O Homem com a Pistola de Ouro e o livro de contos Octopussy foram publicados postumamente. Fleming morreu em agosto de 1964.

Além de Fleming

Bond tinha se tornado, muito também graças aos filmes, uma franquia de sucesso. A Glidrose Productions, a companhia que mais tarde se tornaria a Ian Fleming Publications – após a morte do escritor – precisava de alguém para continuar as aventuras doo “Bond literário”. Eles encomendaram um romance a Kingsley Amis que (usando o pseudônimo de “Robert Markham”) escreveu Colonel Sun, publicado em 1968.07

Amis era um poeta, romancista e crítico literário extremamente reconhecido na Inglaterra. Seu primeiro romance, Lucky Jim (1954) se tornou uma referência no Reino Unido, já que satirizava pesadamente as instituições inglesas. Uma escolha estranha? Não. Além de ser um intelectual, Amis admirava profundamente Fleming e sua criação. Ele havia inclusive escrito dois livros sobre Bond antes de Colonel Sun.

Na sua investida no Bond literário ele usa como vilão o Coronel Sun Liang-Tan, um membro do Comitê de Atividades Especiais do Exército da Libertação Popular da China. Ele era um hábil e sádico torturador que sequestra M e mata várias pessoas. O James Bond de Amis então é movido à vingança. Ele não age  mais pelo Reino e pela Rainha.  Ele quer uma ter satisfação pessoal quando encontrar Sun e fazê-lo pagar.

Além disso, o livro enfatiza muito mais a intriga política que os anteriores escritos por Fleming. Em algo quase impensável para a época, ele coloca Bond junto com os soviéticos para lutar contra a China. E, é claro, conseguir a sua vingança.

Colonel Sun é, de longe, o livro mais violento de James Bond publicado até hoje. E um dos mais bem escritos. Entretanto, a maioria dos críticos odiou. A ideia de ter um Bond motivado por vingança parece que não caiu bem. O estranho é que uma premissa parecida foi usada no décimo sexto filme do personagem, Licença para Matar, de 1989. Uma pena, pois o livro é digno de figurar entre os melhores do próprio Fleming.

Os Anos 80 e a Licença Renovada

O Bond literário ficaria esquecido por toda a década de 1970. Com exceção das duas novelizações de Christopher Wood para O Espião que Me Amava (1977) e O Foguete da Morte  (1979), um romance original de James Bond só apareceria em 1981.

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John Gardner, famoso escritor inglês de romances de ação. foi convidado para assumir o personagem. Entre 1981 e 1996 ele escreveu quatorze livros originais e mais duas novelizações. A Glidrose pediu que ele transportasse Bond para os anos 1980. Gardner então ajustou a época, dizendo que as histórias de Fleming se passaram nos anos 1970 e não nos 1950 e 1960. Ele também tornou Bond mais velho, com direito a uma promoção a Capitão (ele era um Comandante até então), uma preocupação com a sua saúde (começou a fumar cigarros de baixos teores) e deu a ele cabelos grisalhos nas têmporas.

O problema, é claro, é que os livros de Gardner podem ser considerados – para usar um termo gentil – mornos. Muitos acharam que o seu primeiro livro, Licença Renovada foi uma emasculação de Bond. É um exagero, talvez. Mas o fato é que nenhum dos outros treze romances de Gardner – apesar de vários deles terem aparecido na lista de best-sellers do New York Times – chegou perto dos livros de Fleming. Além disso, algumas situações embaraçosas apareceram durante a sua passagem com 007, como Bond ser amiguinho de Margaret Thatcher (visto em Vença, Perca ou Morra de 1989).

09O crítico Nicholas Shrimpton, no New Statesman disse: “O que John Gardner parece não ter percebido é que Bond é estritamente relacionado à sua época (…). Removido de seu ambiente, do seu habitat, ele se torna um peixe fora d’água. Todo o glamour acaba murchando, as suas deliciosas autoindulgências, quando aparecem, precisam ser desculpadas. E toda a atmosfera se torna absurda”.

Com COLD (1996), Gardner – já com problemas de saúde – se despede da franquia. E a solução para substituí-lo veio do outro lado do Atlântico. De um jovem americano chamado Raymond Benson.

Nunca Sonhe em Morrer

Benson já havia escrito, em 1984, o livro teórico James Bond Bedside Companion, um livro sobre Bond, Fleming e os filmes. Além disso, ele havia sido o designer e escritor de alguns videogames que usavam o personagem, como James Bond 007: A View to a Kill (1987). Com o afastamento de Gardner, a Gidrose imediatamente pensou nele para continuar as aventuras de Bond. É claro, algumas controvérsias surgiram, principalmente porque ele foi o primeiro escritor americano a assumir 007. Além disso, ele escolheu ignorar muito da continuidade estabelecida por seu antecessor e colocar elementos dos filmes (como uma “M”).

Conta-se que ele recebeu carta branca para trabalhar o personagem da maneira que quisesse. Assim, decidiu que apenas os livros de Fleming eram canônicos e os de Gardner não seriam seguidos, apesar de ele usar alguns poucos aspectos dos livros anteriores.

Em 1997, na edição de Janeiro da Playboy, o conto “Blast from the Past” é publicado, inaugurando a era de Benson com Bond. Mas “Blast from the Past” é algo atípico, já que não se encaixa nem na cronologia de Gardner nem da do próprio Benson. Na verdade, mostra consequências de algo que aconteceu em Só Vive Duas Vezes, de Fleming.

O primeiro romance, Zero Minus Ten, também foi publicado em 1997. Se o conto era uma continuação de um trabalho de Fleming, o romance mostra o verdadeiro Bond de Benson. O argumento de Zero Minus Ten é interessante: mostra uma série de ataques terroristas às vésperas da época em que a propriedade de Hong Kong foi transferida dos britânicos para a China. O livro vendeu bem o suficiente para que ele escrevesse mais cinco romances até 2002, além de novelizações.

11E como é o Bond de Benson? Extremamente interessante, com certeza. Ele achou um estilo próprio que, apesar de se distanciar de Fleming, lembrava muito o criador do personagem.  E ele criou uma mitologia própria. Por exemplo, a organização O Sindicato, que está envolvida em atividades que vão desde pequenos crimes até atos de terrorismo, torna-se a grande inimiga de 007. Chefiada pelo misterioso “Le Gérant”, o sucesso do Sindicato ocorre devido à habilidade de poder se infiltrar nas agências de inteligência do planeta.

A crítica, por outro lado, odiou os livros de Benson e em 2002 ele publicou seu último livro original de Bond, The Man With The Red Tattoo.

Escrevendo como Fleming

Depois de um hiato de alguns anos, para comemorar o centenário de nascimento de Ian Fleming em 2008, é lançado o livro A Essência do Mal (Devil May Care, no original) escrito por Sebastian Faulks. Faulks vinha de um premiado romance que se passava na época da Primeira Guerra Mundial chamado Birdsong.

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Ele escolheu ignorar todos os outros autores que haviam trabalhado com Bond após Fleming e situa o seu livro em 1967, logo após O Homem da Pistola de Ouro. Na época, Bond havia sofrido uma lavagem cerebral pelos soviéticos e tentara assassinar M. A maior parte da ação se passa na Pérsia (hoje Irã) e envolve o tráfico de drogas, algo que Fleming nunca usou como tema principal de seus livros.

Faulks escreveu o livro exatamente no estilo de Fleming. Aliás, na capa está “Sebastian Faulks assinando COMO Ian Fleming”. Em uma entrevista ao Times de Londres ele disse: “Meu Bond é o Bond de Fleming. Não é Connery, ou Moore ou Craig. Ele bebe e fuma mais que nunca. E ele é um herói solitário, com seus sapatos finos e sua arma sem poder de fogo suficiente.  E ele se mete em situações extremamente perigosas, tanto que você se preocupa com ele”.

A  Essência do Mal foi o único livro de Bond escrito por Faulks, apesar de ser convidado para escrever mais um. O autor sabia que não deveria testar a sorte. Escrever com todos os maneirismos de Fleming por uma vez é uma experiência interessante. Duas vezes acaba se tornando uma paródia.

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Carta Branca

Em 2011, Bond foi entregue a outro escritor americano, Jeffery Deaver. Deaver ficou famoso por seu detetive paraplégico Lincoln Rhyme, criado em 1997 no romance O Colecionador de Ossos, que rendeu (até agora) mais dez continuações e um filme em 1999 com Denzel Washington e Angelina Jolie.

Deaver ignorou todos os outros escritores (inclusive o próprio Fleming) e reiniciou a cronologia de Bond trazendo-o para o século XXI. O seu Bond está com cerca de trinta anos e é membro de uma organização de defesa global criada pós-11 de Setembro.

O seu romance, Carte Blanche, envolve um vilão que fez a sua fortuna com lixo (sério) e tem um fetiche sexual com a morte. Ele pretende detonar uma arma em uma universidade do Reino Unido e matar um cientista que busca a cura para o câncer.

Deaver – misericordiosamente – escreveu apenas esse livro. Sua própria franquia com Lincoln Rhyme, com cerca de03um livro por ano, tomava todo o seu tempo. E ele, infelizmente, não entendeu o personagem, tornou Bond em um herói de ação do mesmo nível de, digamos, Jack Bauer. Todo o glamour inerente ao personagem foi esquecido e ele se tornou apenas mais um entre tantos.

Da África… Com Amor

Em 2013 foi publicado Solo, um novo romance original da franquia, desta vez escrito por William Boyd. Boyd nasceu de pais ingleses em Gana e passou sua infância na África. Então, nada mais lógico que ele usasse aquele continente como um dos cenários.

Boyd acertadamente ignorou a cronologia estabelecida por Deaver e situou o seu livro em 1969. Bond é enviado a o país fictício Zanzarim – uma versão (propositadamente) mal disfarçada da Biafra durante a guerra civil na Nigéria. Mais uma vez, aos moldes de Colonel Sun, de Amis, o tema é a vingança. E é exatamente esse o ponto forte do romance.

O Bond de Boyd é calcado totalmente no de Fleming. Ele tem quarenta e cinco anos e não está em plena forma. Isso gerou algumas discussões entre o autor e a Ian Fleming Publications, o que o alienou o suficiente para que Solo fosse o seu primeiro e único livro com Bond.

Os críticos se dividiram. Mas boa parte deles considera Solo tão bom (ou até mesmo superior) aos livros de Fleming.  Nem isso atraiu Boyd ao mundo de Bond novamente.

10Em Setembro de 2015, foi lançado Trigger Mortis, de Antony Horowitz, mais uma vez devolvendo Bond a sua época original, os anos 1950. Horowitz é conhecido como o autor dos livros juvenis de Alex Rider, além de ter escrito para diversas séries da TV britânica, como Agatha Christie’s Poirot.

Trigger Mortis se passa em 1957, duas semanas após os eventos de Goldfinger, e tem como trama a corrida espacial, além de trazer a volta de uma das mais icônicas Bond-girls (e com o nome mais improvável de todos), Pussy Galore. Horowitz usou material inédito que Fleming tinha escrito para uma série de TV que não foi filmada, Murder on Wheels, na confecção do primeiro capítulo do livro.

Batido, não Mexido

Além desses romances originais, Bond teve adaptações para livros de seus filmes, uma série com o Bond adolescente que se passa nos anos trinta e até mesmo a (ótima) trilogia The Moneypenny Diaries, que supre muita informação entre os romances originais de Fleming. Além disso, dezenas de quadrinhos foram publicados – sendo que a primeira versão em tiras de jornal saiu um bom tempo antes dos primeiros filmes.

James Bond é um personagem que vai muito além dos filmes. E está esperando para ser redescoberto pelos fãs do agente secreto mais famoso do mundo.

Leiam os romances de Bond. Afinal, você só vive duas… ops… uma vez.

BenBen Santana nasceu no final da Era de Prata, mas cresceu na Era de Bronze. Professor, tradutor e desocupado (quando sobra tempo), vem lendo e pesquisando quadrinhos desde sempre. É amante da ficção científica e um romântico incorrigível. Para outros textos sobre quadrinhos e afins, visite seu blog:http://prataebronzecomics.blogspot.com.br


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4 comentários sobre “Um Herói, Muitos Escritores: a história de 007 na literatura

  1. Tenho todos os livros de Fleming e não acho Bond um individuo cruel e sádico como apontado no texto. Aliás, acho-o muito humano, quase sentimental. De Gardner li 3 e comparto a opinião de que são mornos. E com o defeito terrível de transpor as aventuras para os anos 80. De Benson li só um e também não achei aquela coisa. Faulkner e aquela aventura no Irã foi medonha. Li também Solo e não achei que fosse boa. Li também dois livros da adolescência do agente e achei bom o primeiro, muito bom. Vou procurar Colonel Sun. De resto, a matéria é excelente!

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